É difícil existir alguém que não conheça o ditado “os olhos são o espelho da alma”. Mas esses órgãos ganharam um upgrade e passaram a ser também um “controle remoto” da alma e da mente. A técnica do “brainspotting” (BSP), desenvolvida a partir de 2003, consegue acessar memórias, sensações e incômodos psíquicos através do olhar.

Depois de mapear a demanda, o terapeuta começa a investigar um ponto no campo visual do paciente que vai ativar todas as memórias, emoções e sensações relativas à questão que a pessoa percebe como problema.

“Esse ponto visual é como se fosse um interruptor de determinada rede de lâmpadas. Ligou, essa rede se acende. Vai haver partes dela que são visuais, outras que são sensoriais, outras auditivas etc. A memória está em todo o cérebro”, explica o psicólogo Daniel Gabarra, que é professor da técnica de BSP em Belo Horizonte. Ou seja, o que a posição ocular faz é estabelecer uma localização para acender a rede de sinapses dessa memória.

Mas localizar apenas não basta. É necessário ajudar o paciente a lidar com o incômodo que a questão traz. E, segundo Gabarra, o BSP consegue fazer isso também. “Algumas respostas emocionais vão sendo formadas e viram padrões que se repetem. A pessoa está o tempo todo repetindo e vivenciando um evento passado, sem se dar conta. O que queremos, com o brainspotting, é trazer esse padrão à tona para que o cérebro reorganize a rede de memórias e consiga dar outras respostas para essa memória”, explica o psicólogo.

A técnica começou sendo usada para o tratamento de traumas, especialmente os estresses pós-traumáticos. Hoje, o BSP é usado em todas as demandas terapêuticas, que vão desde depressão, ansiedade e transtorno bipolar até términos de relacionamentos e bloqueios em atividades do dia a dia.

A professora Maria do Carmo Sá Pereira, 51, por exemplo, procurou o auxílio da técnica para superar o medo de dirigir. Ela, que só tirou carteira de motorista depois de nove reprovações no exame, não conseguia nem dar ré em seu carro dentro da própria garagem.

“Comecei a fazer o tratamento em fevereiro deste ano. Durante as sessões, fui percebendo que o medo de dirigir tinha a ver com alguns medos da condução da minha própria vida”, conta ela.

Ao longo do tratamento, que durou dez sessões, ela relata ter entrado em contato com sensações, como vontade de ir embora, raiva, tristeza, angústia, e não economizou no choro. Mas, no fim, compensou.

“Não foi fácil, mas consegui me resolver com todas essas questões. Notei até que fiquei com mais ritmo para dançar e fazer minhas aulas de hidroginástica. E mais: descobri que dirigir é uma delícia! Adoro e me sinto superindependente. Agora estou doida para viajar de carro dirigindo”, sonha ela.

ESTÍMULOS

EMDR atua de maneira semelhante

O “brainspotting” (BSP) é uma técnica “filha” de outra, que também utiliza os movimentos oculares como base para tratar as questões psíquicas: o EMDR (sigla em inglês para Dessensibilização e Reprogramação por Movimentos Oculares), que ajudou no tratamento dos traumas do 11 de Setembro. Porém, há diferenças.

Enquanto o BSP trabalha com o olhar em um ponto fixo, o EMDR trabalha com movimentos oculares no sentido direita-esquerda. “É como se os estímulos bilateralizados estivessem estimulando o cérebro a acender outras áreas enquanto você está pensando naquela questão”, explica o especialista Daniel Gabarra.

A ativação do BSP, segundo ele, funciona em uma perspectiva mais “diagonal”, indo de áreas de maior consciência para zonas mais primitivas do cérebro.

DEPOIMENTO

Raquel Sodré
Repórter, sobre uma sessão experimental de ‘brainspotting’

Eu sou uma procrastinadora. Entre todas as minhas características que me incomodam, talvez essa seja a campeã. Foi com essa queixa que cheguei ao consultório de Daniel Gabarra, especialista em brainspotting. Depois de uma longa contextualização do problema, ele começou a aplicar em mim a técnica. Primeiro, Gabarra pegou uma antena e guiou meu olhar por alguns pontos no espaço do consultório. Em determinado ponto, um calor e uma sensação de ansiedade me faziam ter vontade de me levantar do sofá. Depois, Gabarra identificou também outro ponto, no qual eu me sentia mais segura e confortável. Meu desafio, durante toda a sessão, foi olhar fixamente para o ponto mais desconfortável e me relacionar com a aflição de pensar em mim como uma pessoa desorganizada e enrolada. Nos primeiros minutos, a ansiedade era enorme. Aos poucos, insistindo no olhar, ela foi diminuindo, junto com meu grau de identificação com os pensamentos. Comecei a pensar nos meus problemas como se fossem de uma terceira pessoa, até que, de repente, eles não me causavam mais nenhum tipo de incômodo. Por fim, já estava totalmente em estado meditativo, com uma visão mais compreensiva sobre minha metodologia de trabalho – que envolve tempo para divagação – e bastante bem-resolvida com isso.

 

Publicado em 16/12/16 – O Tempo – por RAQUEL SODRÉ